<font color=0094E0>Uma carta sem direitos fundamentais</font>
Muitos tentam apresentar «A Carta dos Direitos Fundamentais da União» como contraponto ao liberalismo capitalista que determina os princípios e políticas da União, mas bastará uma leitura atenta para se constatar que tal não passa de uma mera ilusão. Vista de perto, a apetecível cenoura com que acenam aos trabalhadores é, afinal, de plástico.
O texto, retomado e adaptado do derrotado tratado constitucional (parte II), continua a aludir no título à noção de «direitos fundamentais». Contudo, muitos destes direitos, designadamente nos domínios económicos e sociais, são transformados em meras declarações de princípios sem qualquer efeito prático, não podendo sobrepor-se aos objectivos primordiais da União, os quais, para que não restem dúvidas, são enunciados logo no terceiro parágrafo do preâmbulo da Carta.
Aqui se afirma que «A União (…) assegura a livre circulação das pessoas, dos serviços, dos bens e dos capitais, bem como a liberdade de estabelecimento». Ou seja, os tais «direitos fundamentais» do ser humano são friamente confrontados com os direitos de livre circulação dos serviços, mercadorias, capitais e de estabelecimento das empresas.
A função meramente decorativa desta Carta é ainda evidenciada no n.º 3 do artigo 52.º onde se afirma: «Os direitos reconhecidos pela presente Carta que se regem por disposições constantes dos Tratados são exercidos de acordo com as condições e limites por eles definidos.»
Esta disposição subalterniza claramente o exercício dos direitos às condições e limites fixados nos tratados, o que, em linguagem corrente, significa a subordinação da pessoa humana ao «bom funcionamento» do mercado interno, à circulação das mercadorias, dos serviços e capitais, à liberdade das empresas.
Por outro lado, se é certo que, em matéria de direitos fundamentais, o n.º 6 do referido artigo abre explicitamente uma excepção ao primado do direito da União sobre as leis nacionais («As legislações e práticas nacionais devem ser plenamente tidas em conta tal como precisado na presente Carta»), não é menos verdade que, já hoje, a liberdade de estabelecimento das empresas ou a livre concorrência não falseada são invocadas pelo Tribunal Europeu de Justiça (TEJ) para dar razão às empresas contra os sindicatos. Veja-se as recentes decisões tomadas contra sindicatos suecos e finlandeses que apenas exigiram o cumprimento estrito das legislações e práticas nacionais nas Laval e Viking.
Conclui-se deste modo que, se não é a Carta dos Direitos que ameaça sobrepor-se às leis nacionais, ninguém duvida de que o tal «sistema que assegura que a concorrência não seja falseada» (Protocolo relativo ao art. 2.º do Tratado da União Europeia), ao qual a própria Carta se subordina, já o está a fazer.
Um retrocesso de décadas
O alcance prático da Carta é assim quase nulo: as suas disposições não podem sequer ser invocadas perante o juiz (n.º5 artigo 52.º), e não criam qualquer direito social europeu susceptível de equilibrar o direito de concorrência, que é a pedra basilar da União («De forma alguma o disposto na Carta pode alargar as competências da União, tal como definidas nos Tratados» - art. 6.º do tratado de Lisboa).
Não obstante, não deixa de ter profundo significado e constituir motivo de grande preocupação para os trabalhadores e cidadãos em geral a forma como direitos fundamentais são aqui transformados em declarações genéricas, dissociadas de qualquer obrigação ou responsabilização pela sua aplicação.
Repare-se, por exemplo, no direito à segurança social. Enquanto a Constituição da República Portuguesa afirma que «Todos têm direito à segurança social» e acrescenta que «Incumbe ao Estado organizar, coordenar e subsidiar um sistema de segurança social unificado e descentralizado» (art.63.º da CRP), a «moderna» Carta dos Direitos resume-se a reconhecer «o direito de acesso às prestações de segurança social e aos serviços sociais» (art.34.º).
Seguindo a mesma lógica redutora, a Carta transforma o direito ao trabalho em «direito de trabalhar» e em «liberdade de procurar emprego, de trabalhar» (n.os 1 e 2 do art. 15.º), esvaziando assim uma disposição inscrita na Declaração Universal dos Direitos da ONU, de 10 de Dezembro de 1948, acolhida em variadíssimas constituições nacionais.
Também não consagra a segurança de emprego e a proibição dos despedimentos sem justa causa, como o faz a Constituição Portuguesa, mas apenas «o direito [dos trabalhadores] a protecção contra os despedimentos sem justa causa».
Não fixa o direito a um salário e rendimento mínimos, bem como à sua actualização regular, ao subsídio de desemprego, nem reconhece o elementar princípio de que para trabalho igual salário igual.
O direito à pensão de reforma é substituído pelo «o direito das pessoas idosas a uma existência condigna e independente» (art. 25.º) e «o direito de acesso às prestações de segurança social e aos serviços sociais» (art. 34.º), subvertendo, por exemplo, a Carta Comunitária dos Direitos Fundamentais dos Trabalhadores, assinada em 9 de Dezembro de 1989 pelos estados-membros da então Comunidade Europeia, que garante «o direito a beneficiar, no momento da reforma, de recursos que assegurem um nível de vida digno».
No mesmo sentido, o direito de todos à habitação, cuja realização é incumbida ao Estado pela Constituição Portuguesa, é remetido na Carta para uma alínea onde se «reconhece e respeita o direito a uma assistência social e a uma ajuda à habitação» (n.3 art.34.º).
Por último, atente-se ainda no facto de que a Carta não reconhece os direitos ao aborto e à contracepção mas, em contrapartida, consagra «o direito à vida» (art. 2.º), dando assim pretexto para novas ofensivas retrógradas neste domínio.
Direitos que a carta não reconhece ou enfraquece
- Direito ao trabalho (é transformado em «direito de trabalhar» e em «liberdade de procurar emprego»)
- Direito à segurança de emprego (despedimentos sem justa causa ou o lock-out não são proibidos)
- Direito à retribuição do trabalho segundo a quantidade, natureza e qualidade (a Carta não reconhece o princípio de que para trabalho igual salário igual)
- Direito ao subsídio de desemprego (é transformado em direito de acesso a prestações de segurança social)
- Direito a pensões de reforma (é substituído pelo «direito» dos idosos «a uma existência condigna e independente» e pelo «direito de acesso a prestações de segurança social»)
- Direito à saúde (é transformado em «direito de aceder à prevenção em matéria de saúde»)
- Direito à habitação (é reduzido a «uma ajuda à habitação»)
- Direitos de contracepção e aborto (declara-se o «direito à vida»)
Aqui se afirma que «A União (…) assegura a livre circulação das pessoas, dos serviços, dos bens e dos capitais, bem como a liberdade de estabelecimento». Ou seja, os tais «direitos fundamentais» do ser humano são friamente confrontados com os direitos de livre circulação dos serviços, mercadorias, capitais e de estabelecimento das empresas.
A função meramente decorativa desta Carta é ainda evidenciada no n.º 3 do artigo 52.º onde se afirma: «Os direitos reconhecidos pela presente Carta que se regem por disposições constantes dos Tratados são exercidos de acordo com as condições e limites por eles definidos.»
Esta disposição subalterniza claramente o exercício dos direitos às condições e limites fixados nos tratados, o que, em linguagem corrente, significa a subordinação da pessoa humana ao «bom funcionamento» do mercado interno, à circulação das mercadorias, dos serviços e capitais, à liberdade das empresas.
Por outro lado, se é certo que, em matéria de direitos fundamentais, o n.º 6 do referido artigo abre explicitamente uma excepção ao primado do direito da União sobre as leis nacionais («As legislações e práticas nacionais devem ser plenamente tidas em conta tal como precisado na presente Carta»), não é menos verdade que, já hoje, a liberdade de estabelecimento das empresas ou a livre concorrência não falseada são invocadas pelo Tribunal Europeu de Justiça (TEJ) para dar razão às empresas contra os sindicatos. Veja-se as recentes decisões tomadas contra sindicatos suecos e finlandeses que apenas exigiram o cumprimento estrito das legislações e práticas nacionais nas Laval e Viking.
Conclui-se deste modo que, se não é a Carta dos Direitos que ameaça sobrepor-se às leis nacionais, ninguém duvida de que o tal «sistema que assegura que a concorrência não seja falseada» (Protocolo relativo ao art. 2.º do Tratado da União Europeia), ao qual a própria Carta se subordina, já o está a fazer.
Um retrocesso de décadas
O alcance prático da Carta é assim quase nulo: as suas disposições não podem sequer ser invocadas perante o juiz (n.º5 artigo 52.º), e não criam qualquer direito social europeu susceptível de equilibrar o direito de concorrência, que é a pedra basilar da União («De forma alguma o disposto na Carta pode alargar as competências da União, tal como definidas nos Tratados» - art. 6.º do tratado de Lisboa).
Não obstante, não deixa de ter profundo significado e constituir motivo de grande preocupação para os trabalhadores e cidadãos em geral a forma como direitos fundamentais são aqui transformados em declarações genéricas, dissociadas de qualquer obrigação ou responsabilização pela sua aplicação.
Repare-se, por exemplo, no direito à segurança social. Enquanto a Constituição da República Portuguesa afirma que «Todos têm direito à segurança social» e acrescenta que «Incumbe ao Estado organizar, coordenar e subsidiar um sistema de segurança social unificado e descentralizado» (art.63.º da CRP), a «moderna» Carta dos Direitos resume-se a reconhecer «o direito de acesso às prestações de segurança social e aos serviços sociais» (art.34.º).
Seguindo a mesma lógica redutora, a Carta transforma o direito ao trabalho em «direito de trabalhar» e em «liberdade de procurar emprego, de trabalhar» (n.os 1 e 2 do art. 15.º), esvaziando assim uma disposição inscrita na Declaração Universal dos Direitos da ONU, de 10 de Dezembro de 1948, acolhida em variadíssimas constituições nacionais.
Também não consagra a segurança de emprego e a proibição dos despedimentos sem justa causa, como o faz a Constituição Portuguesa, mas apenas «o direito [dos trabalhadores] a protecção contra os despedimentos sem justa causa».
Não fixa o direito a um salário e rendimento mínimos, bem como à sua actualização regular, ao subsídio de desemprego, nem reconhece o elementar princípio de que para trabalho igual salário igual.
O direito à pensão de reforma é substituído pelo «o direito das pessoas idosas a uma existência condigna e independente» (art. 25.º) e «o direito de acesso às prestações de segurança social e aos serviços sociais» (art. 34.º), subvertendo, por exemplo, a Carta Comunitária dos Direitos Fundamentais dos Trabalhadores, assinada em 9 de Dezembro de 1989 pelos estados-membros da então Comunidade Europeia, que garante «o direito a beneficiar, no momento da reforma, de recursos que assegurem um nível de vida digno».
No mesmo sentido, o direito de todos à habitação, cuja realização é incumbida ao Estado pela Constituição Portuguesa, é remetido na Carta para uma alínea onde se «reconhece e respeita o direito a uma assistência social e a uma ajuda à habitação» (n.3 art.34.º).
Por último, atente-se ainda no facto de que a Carta não reconhece os direitos ao aborto e à contracepção mas, em contrapartida, consagra «o direito à vida» (art. 2.º), dando assim pretexto para novas ofensivas retrógradas neste domínio.
Direitos que a carta não reconhece ou enfraquece
- Direito ao trabalho (é transformado em «direito de trabalhar» e em «liberdade de procurar emprego»)
- Direito à segurança de emprego (despedimentos sem justa causa ou o lock-out não são proibidos)
- Direito à retribuição do trabalho segundo a quantidade, natureza e qualidade (a Carta não reconhece o princípio de que para trabalho igual salário igual)
- Direito ao subsídio de desemprego (é transformado em direito de acesso a prestações de segurança social)
- Direito a pensões de reforma (é substituído pelo «direito» dos idosos «a uma existência condigna e independente» e pelo «direito de acesso a prestações de segurança social»)
- Direito à saúde (é transformado em «direito de aceder à prevenção em matéria de saúde»)
- Direito à habitação (é reduzido a «uma ajuda à habitação»)
- Direitos de contracepção e aborto (declara-se o «direito à vida»)